terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A possibilidade

O dia estava lindo, as poucas nuvens faziam um efeito bonito no céu. Era mesmo um bom cenário para alguém se tornar inesquecível. No fundo, eu sempre soube que ia acontecer, mas nunca imaginei que fosse tão cedo. O problema era o cansaço. Eu estava cansada de tudo o que me cercava, dos natais solitários, das festas e homens vazios, de me achar tão patética por me achar melhor, por nunca ter tido coragem de dizer o que eu achava, pensava, sentia, queria.

Não valia a pena continuar. A decisão já estava tomada, e realmente não é o tipo de coisa que se volta atrás. Todas as pessoas por quem eu ainda conseguia sentir algo estavam ali me olhando. Algumas choravam, outras só me observavam com atenção, talvez não acreditando que eu realmente estivesse fazendo aquilo.

Eu também me questionava. Eu tinha um bom emprego, podia me sustentar sozinha até o fim da vida, tinha uns amigos legais, era inteligente, divertida até. Alguns me achavam sem graça, mas muitos me achavam bonita o suficiente. De errado, só o sentimento que me atormentava e me tirava o sono: eu tinha um amor, ou o que eu acreditava ser um amor, o maior de todos.

O homem que me fazia parar no meio do dia e pensar no que ele estava fazendo, se ele estaria resfriado, se estava triste porque o seu time perdeu ou se estava satisfeito com o trabalho,só lembrava de mim quando era conveniente. E eu ficava ali, sempre esperando uma ligação, uma mensagem, andava na rua olhando para os lados. Ele nunca me deu nenhuma esperança, nunca disse que ficaria comigo de verdade. Só uma vez, uma única vez, por algum motivo que até hoje eu nunca compreendi direito, ele me escreveu uma carta. A carta dizia que eu era ‘uma possibilidade de amor’, e me fez acreditar que minha paixão valia a pena.

Era só uma possibilidade, mas eu amava ser uma possibilidade, amava que ele tivesse escrito aquilo e relia sempre que sentia a sua falta, todos os dias. Eu só queria ser dele, pensar nele, eu precisava sentir aquilo para seguir em frente, nem que precisasse passar o resto da vida pensando em quando seria a próxima vez que o veria.

Um dia ele não quis mais. No dia seguinte, ele me contou. Eu não pedi, eu não implorei, eu sequer disse o que sentia. Eu só fiquei imóvel e disse ‘tudo bem’. Depois me dei conta de que talvez ele tivesse esperando que eu dissesse algo, mas eu não disse nada, eu o deixei partir.

Perdemos a intimidade, a memória do gosto, do cheiro, do coração. Eu era uma possibilidade e de repente me tornei uma conhecida pra quem se acena quando se está na companhia da mulher e dos filhos. Uma conhecida que sempre se pergunta por que não foi a escolhida.

Logo depois, eu conheci o outro. Bonito, inteligente, prestativo, carinhoso, companheiro, organizado, educado... e chato. Tudo o que fazíamos juntos me fazia imaginar como seria com outra companhia, naquela companhia. Rapidamente eu tinha me tornado o amor da vida de alguém. Alguém que eu sequer conseguia transformar em uma possibilidade. Eu insisti, eu tentei. E quanto mais eu tentava, mais distante do meu objetivo eu parecia. E eu me sentia tão injusta...e esse era mais um dos motivos para eu estar fazendo aquilo.

Subi mais um pouco. As pessoas acompanhavam cada movimento que eu fazia, e talvez eu não estivesse ali se elas tivessem prestado mais atenção em mim antes. Eu precisava disso para que elas me olhassem com carinho? Eu estava suando frio. O lugar era muito alto e eu comecei a sentir vertigens. Por que fui subir tanto? Bastavam alguns degraus. Não dava pra voltar atrás, meu vestido era muito longo, eu não podia tropeçar.

Começaram a gritar o meu nome. As pessoas estavam ansiosas, desesperadas, mas eu quis prolongar aquele momento. Comecei a pensar que era um erro, que eu deveria lutar pelo que eu realmente queria, que talvez as coisas fossem diferentes se eu não fosse tão covarde. A verdade é que eu tinha vergonha da minha covardia, e não podia mais conviver com ela.

Para mim parecia o melhor a fazer. Eu não via mais sentido em nada mesmo. Em alguns meses, a maioria já teria se esquecido desse dia. Talvez alguns pudessem lembrar, aumentar um pouco, me condenar, mas nada que transformasse a vida de ninguém. Pensei nele mais uma vez. Eu era mesmo infantil. Só conseguia pensar no que ele sentiria. Será que ia sofrer? Ia chorar por mim, por aquilo que nunca me retribuiu?

Olhei para trás mais uma vez, encarei cada rosto demoradamente, escutei gritarem meu nome mais um pouco, acenei para a minha mãe, sorri para alguns amigos. O outro estava ali, e me contemplava. Pude ver as lágrimas em seus olhos, mas não consegui me comover. Quanto mais ele chorava, minha vontade de acabar logo com aquilo aumentava. Eu também tinha lágrimas nos olhos e sentia uma pena enorme de mim. Dei mais alguns passos a frente, estendi os braços e finalmente arremessei o buquê.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Na livraria

Eu nem sabia direito o que estava fazendo ali. Passei horas encarando os livros. Folheava alguns, em outros apenas passava as mãos, para sentir a textura da capa. O segurança me olhava de um jeito desconfiado e a sensação de parecer suspeita me deixava desconfortável, mas me sugeria um pouco de desafio. Ele não podia falar ou fazer nada, apenas pensar, duvidar do meu caráter, sugerir à vendedora que ficasse de olho em mim, mas não podia mesmo fazer nada, porque não sabia quem eu era, o que eu poderia fazer. A verdade é que eu não poderia fazer nada mesmo, mas ele também não sabia disso.

Eu nunca roubei nada. Quando era mais nova, me faltava coragem; todas as meninas do colégio entravam nas lojas, socavam os bolsos de canetas e chocolates e saíam triunfantes. Trocavam entre si, davam de presente para outras meninas, mas nunca me davam nada. Diziam que era para que eu deixasse de ser covarde. Eu ficava com raiva e chorava, trancada no banheiro da escola. Com o passar dos anos, algumas cansaram, outras foram descobertas pelas mães e eu não precisei mais tentar criar coragem.

Ali, na livraria, minha única intenção era irritar o segurança. Eu me sentia fraca e deprimida, tinha escolhido aquele lugar para fugir de tudo o que me atormentava do lado de fora. Não era justo que ele me olhasse com toda aquela desconfiança, eu merecia um pouco de pena, pelo menos pela minha aparência triste e cansada. Eu sentia pena de mim, e ao contrário do que minha mãe costumava dizer, isso não era ruim. Aliás, foi a melhor sensação que eu tive naquele mês.

Eu já tinha me cansado da brincadeira, agora a cara sem expressão do segurança é que estava me irritando. Resolvi me arrastar até o café e tomar alguma coisa.

Assim que eu sentei, ela apareceu. Era bonita; cabelos louros, menos lisos que os meus, mais alta do que eu, mais magra do que eu. Eu mal conseguia pensar. Reparei na roupa: ela estava vestida da forma mais elegante que não poderia estar naquele dia. Um vestido leve, a sandália alta que deixava os pés bem feitos a mostra. Uma medalha pequena em um cordão finíssimo. Olhei pra mim: desarrumada, meus cabelos estavam sem vida, a franja grudada na testa, cheia de bijuterias que disfarçavam a minha falta de brilho. Vestia quase um pijama. Senti vontade de chorar, mas nenhuma vontade de ir embora. Eu queria ficar ali o máximo de tempo que eu pudesse, só contemplando aquela pessoa que não sabia a importância que tinha na minha vida.

Ela parecia calma e extremamente feliz. Passava a impressão de nunca ter passado por qualquer problema, que nunca tinha se preocupado, pensado se as coisas são mesmo da forma como ela pensa que são ou se perguntado se era mesmo amada. Ela inspirava certezas e eu tinha a resposta para todas as dúvidas que ela deveria ter. Ou achava que tinha.

Senti vontade de chegar mais perto. Quando levantei, minhas pernas tremiam de forma vergonhosa. Caminhei devagar. Eu estava sentindo uma dor terrível no peito, umas pontadas fortes. Não é nada, só tensão – eu pensei – e me debrucei no balcão da forma mais corajosa que consegui. Estávamos separadas por uma pilha de livros em promoção.

O vestido era ainda mais bonito de perto, todo delicado e esvoaçante. O decote era bem grande e por um instante eu fiquei imaginando como eram os seus peitos, os peitos que ele via, que ele beijava e admirava. Um enjôo forte tomou conta de mim, me fazendo engasgar.

Ela me olhou.

Os olhos verdes, lindos, me encaravam e eu não conseguia desviar o olhar.

Dividíamos o mesmo homem. O mesmo homem havia olhado nos meus olhos escuros e naqueles olhos. Ouvíamos os mesmo suspiros, a mesma voz, a mesma risada. O mesmo homem pedia para ser beijado por nós duas. Será que ele pedia daquele jeito pra ela também? O mesmo homem era amado por duas mulheres que estavam frente a frente e uma delas não imaginava a importância daquele momento.

E eu tinha imaginado, muitas vezes. Que injustiça, eu pensei.

Agora, ela estava ali na minha frente e eu não sabia o que fazer. E se eu contasse tudo? Ele não queria mais nada comigo, me maltratou, disse que eu estava velha demais pra isso, disse pra eu tomar jeito, ficar com a minha família. Como se eu tivesse passado tantos anos com ele por libertinagem, por falta de vergonha na cara, só pra desrespeitar meu marido, meus filhos. Como se essa paixão que eu sinto, que não larga de mim, que me atormenta e não me deixa viver, fosse escolha minha.

Eu era bonita, que nem ela. Eu era uma promessa. Todo mundo falava que eu ia ser um espetáculo de mulher, que eu ia ter sucesso no que eu escolhesse pra fazer. E eu podia ter escolhido qualquer coisa mesmo. Mas escolhi esse homem, e achei que ele podia fazer parte da minha vida extraordinária, e ele nem teve essa chance porque essa vida passou longe de mim.

Decidi não contar nada, e nem foi por ele. Minha covardia me fez pensar que se eu contasse, ele ia querer se vingar e contar tudo pro pessoal lá de casa também, e isso eu não ia agüentar, eu nunca tive medo de acabar sozinha, porque pra mim essa possibilidade nunca existiu. Mas naquela hora eu senti medo, aí não contei. Além disso, eu pensei nela, juro. Imaginei a reação, o susto, a decepção, a cara de surpresa, o choro... E me senti tão culpada que a pontada veio mais forte do que da outra vez.

Coloquei a mão no peito. Doía tanto que eu tive que apoiar a outra mão no balcão e acabei derrubando uma pilha de livros no chão. Ela se assustou e ficou me olhando. Tentei abaixar pra catar tudo, mas foi ainda pior, eu já não conseguia respirar e caí no chão. Que vergonha, eu pensei. Quanto mais força eu fazia, mais doía e eu não conseguia respirar de jeito nenhum. Vi quando ela pegou o celular e chamou a ambulância. Apaguei por alguns minutos.

A primeira coisa que eu vi quando acordei foi um par de olhos enormes que sorriam pra mim. Olhei pra baixo e comecei a chorar quando percebi que ela segurava a minha mão.Eu só chorava, não conseguia dizer nada e ela afagou os meus cabelos, tirou minha franja dos olhos e repetia "Vai ficar tudo bem, tudo bem".Eu me senti enlouquecer, comecei a prestar atenção no carinho dela e na voz, só pra sentir exatamente o que ele sentia quando ela encostava nele. As mãos macias, a voz suave, tudo doía demais. A ambulância parou, ela desceu, os médicos me puxaram. Eu estava totalmente imobilizada, tinham me amarrado na maca indigna.

Do lado de fora, meu marido me esperava. Ela foi até ele, trocaram umas palavras,só consegui ouvir o agradecimento.Ele a abraçou. Ela voltou, se debruçou e sussurrou no meu ouvido: “Seu marido está aí, fique com ele.”.

E eu fiquei.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

terça-feira, 23 de junho de 2009

Do outro lado da mesa.

Este texto está sujeito a alterações. Quero aproveitar essa fase de inspiração e resolvi postar logo. Sugestões?

Adoraria estar longe dali. Tentava se concentrar na conversa, mas quanto mais tentava, mais entediantes pareciam ficar aqueles homens, parecia que não tinham mais nada a dizer, e por isso falavam sem parar sobre aquele conhecimento inútil, adquirido em tantas outras reuniões como aquela, que só de imaginar lhe causavam arrepios.

Sabia que não sairia tão cedo, afinal a irmã, que a convidara, parecia estar bastante entretida. Começou a pensar em maneiras de diversão. Passou rapidamente o olhar pela mesa e encontrou um que lhe desconcertou. Ele a encarava de um jeito tão intenso que ela chegou a pensar que era só um olhar perdido, mas logo mudou de idéia quando percebeu que ele não desviara. Ele não era muito atraente, não era bonito nem feio,não era charmoso, mas lhe despertou interesse, principalmente quando lembrou que ele tinha sido o único que não tinha tentado puxar conversa a noite toda.

Quando pensou nisso, sentiu uma leve ferida em seu orgulho. Ela era sempre desejada, a que os homens se desdobravam para receber aquela atenção indiferente, que ela fazia questão de aprimorar a cada nova investida masculina. Sempre tinha sido assim, talvez por isso tivesse tão poucas amigas. Sentia falta disso, mas nunca admitia; preferia dizer que as mulheres eram muito competitivas e inseguras, e que por isso, preferia a companhia vazia dos homens.

Nunca tinha se apaixonado e disso não sentia falta mesmo. Os homens, na verdade, não lhe interessavam. Desde a época do colégio olhava com desprezo para todas as meninas que sonhavam com o homem ideal e fazia questão de demonstrar, fazendo graça de todas as histórias que contavam. Assim, aos poucos, começou a ser excluída de todos os grupinhos risonhos e escandalosos de meninas descontroladas.

Na verdade, ela era apaixonada por si mesma. Era um amor tão grande, que não tinha espaço mesmo para mais ninguém. Sentia-se extremamente bonita e fazia questão de cuidar de cada parte do seu corpo para que essa sensação durasse mais alguns anos. Não fazia questão de ser inteligente, mas procurava se informar para nunca ser motivo de chacota. Apesar de tudo, sabia que a mulher burra perde a graça, e ela nunca perdia a graça.

Aquela noite parecia começar a ficar mais interessante, o ser esquisito continuava a observá-la e não dizia nada.Resolveu investir; mais um na sua lista de apaixonados que se tornavam patéticos em quesão de dias. Ela começou a mexer nos cabelos: afrouxou o coque, deixando fios curtos e negros espalhados pelo pescoço e ombros. Quando o anfitrião serviu-lhe mais uma taça, agradeceu com um sorriso largo e olhou novamente para o homem à sua frente. Ele não olhava mais. Quem era esse idiota que não olhava justamente quando ela começou a querer chamar sua atenção? Começou a pensar em alguma maneira de chamá-lo de volta, mas estava tão desconcertada com a sua própria patetice que não conseguia.

Levantou o olhar e ele a encarava novamente. Decidiu que era hora de agir; ouviu quando o que parecia ser o amigo mais próximo fez uma pergunta sobre a safra do vinho. Ele deu de ombros e ela prontamente respondeu, complementando com a origem e falando sobre uma viagem que tinha feito, onde o provou pela primeira vez. O amigo, surpreso com a súbita animação daquela que – esperançoso em sua embriaguez – ele acreditava que poderia terminar a noite em sua cama, ouviu com toda a atenção o relato da mulher.

Enquanto isso, os grandes olhos verdes e expressivos a encaravam novamente, dessa vez com a testa franzida e a expressão de desdém que – pensou - ela deveria estar fazendo. Impunemente, deu uma leve risada e desviou o olhar, iniciando uma conversa com a menina que tinha acabado de chegar; diziam que era a sobrinha do dono da casa.

Estava atordoada. Mal conseguiu recuperar o fôlego e percebeu que sua história nada tinha a ver com o que o amigo tinha perguntado. Tinha feito papel de idiota mais uma vez e estava começando a suar frio, nunca tinha se sentido assim. Num último gesto de desespero e pavor pela proximidade da primeira derrota, tentou iniciar um assunto qualquer; reclinou o corpo para frente e, olhando só para ele, comentou como seria bom estar em outro lugar,mais animado. Ele olhou de novo com a mesma cara da primeira vez e respondeu o “não” mais gelado que podia e virou-se de volta para a garota sorridente ao lado.

Completamente fora de si, derrubou a taça e caiu em prantos. Ele levantou, caminhou até ela, levantou sua cabeça, olhou em seus olhos escuros e envergonhados. Sorriu com carinho, ignorando o resto da mesa, que olhava incrédulo para a cena. Pegou-a pela mão e saíram sem se despedir.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mar e Lua


"Nasceram no mesmo ano.Os pais eram amigos, moravam na mesma quadra. Brincaram juntas, iam juntas ao colégio, ficaram mocinhas com diferença de dias. Ás vezes também dormiam abraçadinhas. Coisa de adolescente, desculpavam as mães, um pouco desconfiadas de tanto grude.

Acabaram se apaixonando.

O amor tão urgente delas durou bem mais do que se previa. Anos depois, os pais se acostumaram.

Um belo dia elas resolveram casar e casaram. Com diferença de dias."



Pra você!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Moral da história...

A única coisa que conseguia fazer era olhar pela janela. Pelo menos o dia estava sendo condescendente com ela: estava melancólico, triste. A Lagoa estava cinza, até a chuva parecia sem vontade de viver, mal se fazia perceber, caía bem fininha e depois parava. Lá de cima ela acompanhava com os olhos alguém que corria ou passeava com o cachorro, e cada vez que alguém passava ela tentava imaginar o motivo de estarem ali. Por que estavam na rua em um dia tão terrível? Não teriam amigos, seriam sozinhos ou estariam brigados com a família? Ou estariam ali só para provocá-la, mostrar que, por mais que ela quisesse acreditar, ainda havia movimento no mundo e conseqüentemente na sua vida?

Ela não queria acreditar. Havia passado anos achando que bastaria casar e todos os problemas vomitados na sala do analista desapareceriam na lua de mel. Tinha sido criada para isso. A família a cobrava, todas as amigas já estavam indo para o primeiro filho. Derramava-se em prantos todas as vezes em que ele dizia que não queria casar, que nunca pretendeu ter filhos e que não mudaria por sua causa. Quantas vezes parou no hospital, empanturrada de remédios e teve que ser buscada pelos pais, que olhavam acusadoramente para o namorado da filha, que abaixava a cabeça e dizia que tentaria resolver o problema.

E não resolvia. Quanto mais ela pedia, menos ele tinha vontade de realizar o seu desejo. E voltavam todos para a clínica novamente. Um dia o pai resolveu acabar com tudo. Homem importante, não queria mais correr o risco de algum repórter mais esperto vender jornais às suas custas. No quarto, repleto de flores e balões, pegou o genro pelo braço e levou para o corredor. Disse que ou casavam-se ou a filha se mudaria, nunca mais seria vista no país. Além disso, como ele pretendia ser um engenheiro de sucesso fazendo uma desfeita dessas para uma família tão boa e honesta? Ofereceu a festa, o apartamento e o labrador.



---X---

Começaram a namorar em uma festa da empresa da família dela. Ele tinha trabalhado na construção do novo shopping da família e estavam todos comemorando a inauguração. Havia se formado há menos de um ano e via naquele emprego a sua grande chance de deixar de ser um ninguém, como sua mãe dizia. Filho do porteiro de um prédio no Leblon, tinha estudado a vida toda bancado pelo patrão dos pais. Queria terminar seus projetos no Brasil e estudar fora, abandonar de vez o recalque de ser sustentado e de ser sempre lembrado disso.

Ela tinha acabado de voltar de uma longa viagem pela Europa com as amigas. Estava inconsolável com o fim do namoro com um espanhol, que disse que não iria para o Brasil com ela. Quis ficar por lá, mas o pai disse que ou voltava ou começava a trabalhar. Voltou. Na festa, foi avisada por uma tia do “rapaz bonito” que estava na festa. Apaixonou-se imediatamente e deu um jeito de ser apresentada.O jeito de princesa do papai, a desenvoltura e inteligência impressionaram o garoto. Começaram a namorar na mesma noite e um mês depois ele estava contratado.

Alguns meses depois, ela começava a insinuar a sua enorme vontade de casar. Não admitia que um homem que tinha dado a sorte de estar com ela não quisesse casar imediatamente. Ele gostava dela, mas não se sentia preparado para casar, nunca tinha sentido vontade de ter filhos. Na verdade, uma namorada estava fora de seus planos quando a conheceu, e ela ficava transtornada quando ele dizia isso. Queria continuar com a sua vida, não tinha abandonado a ideia de morar fora, de se especializar, ficar por lá de vez.Por enquanto,queria continuar tendo a liberdade de escolher, mas ela não parecia interessada em ser abandonada outra vez, tinha calafrios só de pensar, chorava quando ele falava em viajar.

----X----


Depois da conversa com o sogro, na balança, o conforto, o medo do fracasso e um resto de amor sufocado falaram mais alto. Seis meses depois, casaram-se. Ela estava radiante. Todas as revistas de noivas estavam presentes e ela era o modelo para todas as solteiras da cidade. Por outro lado, o noivo recebia a todos, cumprimentava, recebia os presentes, mas pouco sorria e não se animou nem quando sua banda preferida entrou no salão; surpresa da esposa, claro.

Quando chegaram de viagem, a casa estava completamente montada. Ele não sabia nem qual era a sua gaveta de cuecas. Sentia vontade de chorar, de quebrar todos aqueles bibelôs e cristais que ele desconhecia a origem. Ela rodopiava e falava sem parar: “viu que casa linda, meu amor?”, “viu como valeu a pena casar?”, “Viu como meu pai te adora?” e seus pensamentos iam se tornando cada vez mais perversos.

Alguns meses se passaram e logo começou a cobrança pelos herdeiros. Ele odiava que usassem essa palavra, já que sentia que nada era seu, portanto, ninguém poderia herdar nada. Nos jantares de família, nas festas, parecia que esse era o único assunto que conheciam. Na verdade, já estavam tentando e essa era a nova frustração da mulher. Cada menstruação era uma crise de choro de um lado e do outro, um suspiro aliviado.

Até que um dia, aconteceu. O papel do exame esfregado na cara lhe inspirava terror, era como se estivessem lhe condenando à prisão perpétua por um crime que foi obrigado a cometer. Depois de todas as celebrações e notas no jornal, mais sangue. E uma nova visita a velha clínica de desintoxicação.

A partir daí foram crises de choro, ataques histéricos, cacos de vasos e bibelôs jogados pela sala. Ela o culpava por toda a sua desgraça. Um dia ele chegou, a mulher jogada no sofá, bolas brancas e enormes espalhadas pelo chão. A empregada apareceu, lançou o olhar de acusação que ele conhecia tão bem e naquele momento tudo acabou. Subiu, pegou uma pequena mala e desapareceu.

Pela manhã, a mulher levanta-se, procura pela casa e vê o bilhete: “Não precisava, mas preciso ter essa consideração, você e sua família me condicionaram bem. Fui e não volto nem que você se mate. Por mim, seria ótimo até.” Não derramou uma lágrima, estava em choque. Catou as pílulas, roupas e cacos e foi tomar banho. Sabia que tinha exagerado, sabia que tinha feito o homem que amava sofrer, mas parecia que até aquele momento, até ele deixar bem claro o quanto a odiava, ela não tinha se dado conta.

Seu cérebro parecia estar funcionando novamente. Sentia-se grande, ocupando espaço demais no chuveiro, na casa, no mundo. Pela primeira vez em cinco anos, tomava consciência de si. Se vestiu e foi para a sala, ficou horas olhando pela janela, a Lagoa tão cinza quanto parecia a sua vida agora. O cachorro passou e ela chamou-o pelo nome, tentando fazer carinho. O cachorro a encarou e desviou:caiu em prantos.

Finalmente decidiu que se aquelas pessoas estavam ali, correndo apesar da chuva, do tempo feio e da Lagoa cinza, ela deveria fazer o mesmo. Pensou em ligar para as amigas, rever os pais, quem sabe fazer uma viagem, voltar a estudar. Quando já imaginava uma nova vida, uma redenção pelo que tinha feito a todos e a si mesma, o telefone tocou. Levantou-se num sobressalto e o cachorro se assustou. Passou correndo entre suas pernas. Ela desequilibrou-se.

No dia seguinte, uma nota pequena no jornal dizia: “Na Lagoa, mulher se mata após ler bilhete do marido, que a abandonara. Os médicos e a família disseram que ela tinha problemas psiquiátricos e jamais poderia ter sido deixada sozinha. A prisão preventiva do marido já foi decretada, ele é acusado por abandono de incapaz.”

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O conto feliz

Eu já não conseguia me conter. Dei um jeito na sala, passei um pano nos móveis, abri as cortinas, fechei, abri de novo. Olhei em volta e parecia que a cena era a mesma, por mais que eu tentasse me ocupar as horas não passavam. Entrei na cozinha, tomei um copo d’água que desceu arranhando a minha garganta. Desisti da ideia de tentar comer alguma coisa antes e eu nem sei o que me fez pensar que eu conseguiria, porque era sempre assim, a proximidade do encontro sempre me deixava tão nervosa que eu tinha que me controlar pra não passar mal.

Eu tinha acabado de me separar, há três dias. Dentro das possibilidades de uma separação tudo tinha corrido bem, sem brigas, sem maiores conflitos. Umas desculpas minhas, umas justificativas dele e nada mais. Tudo muito protocolar, seguindo a lógica do casamento. Chorei durante o dia, mais pela beleza do momento do que por tristeza. Na verdade, eu não chorava por ele, chorava por mim, e chorava de felicidade e um pouco por pena dele, do que eu tinha fingido ser, e pena de mim também.

Olhei o relógio, liguei o som e comecei a cantar pra me acalmar. Quando acabou a música o interfone tocou. Dei uma olhada no espelho da sala, me achei bonita, meu rosto estava iluminado de novo, e eu fiquei parada alguns instantes, me admirando. Atendi o interfone e ele disse um “sou eu” tão bonito, tão íntimo que eu gelei. Será que eu queria aquilo mesmo? Balancei a cabeça. Era claro que eu queria.

Corri pra abrir a porta. Olhar aquele rosto sempre me dava uma sensação infantil, de satisfação por tão pouco. Ele me abraçou, e eu amava aquilo, e ele devia saber disso, porque sempre fazia, e se eu não largasse ele nunca parava de abraçar. Ele perguntou se eu estava bem e eu nem respondi. Eu não queria conversar dessa vez, eu sempre queria, mas naquele dia não. Peguei ele pelas duas mãos e levei pro quarto. Eu suava frio e não entendia o motivo, não queria que ele reparasse.

Paramos no meio do quarto e ele nunca me beijava, chegava o rosto bem pertinho e esperava que eu beijasse, como se isso fosse aliviar a sua culpa. Eu ficava irritada, mas beijava assim mesmo. Naquele dia não, deixei ele chegar bem perto e fiquei imóvel. Ele me olhou confuso e recuou. “Você não quer?”. Que maldito. E o que eu estaria fazendo ali se não quisesse? O que ele estaria fazendo ali se eu não quisesse? Olhei bem fundo em seus olhos, tão escuros que eu me via inteira. E aí, pela primeira vez ele fez o que eu queria, me puxou e beijou com uma paixão que eu tinha recebido poucas vezes na minha vida, todas dele.

Daí pra frente, tudo o que aconteceu foi na mesma freqüência. Dessa vez não era só a urgência de sempre, enorme, mas cautelosa. Ele não foi delicado, não me pegou com medo de me machucar, com culpa, aquela culpa ruim, quase pedindo desculpas por estar comigo, por ter me feito gostar tanto dele. Tudo o que ele fazia era decidido, firme e não esperava nada de mim, não me consultava. Ele estava guiando tudo, cada beijo, cada toque e eu nunca tinha me sentido tão realizada.

Senti o corpo cansado desabar em mim, ainda tremendo. Comecei a passar os dedos de leve em cada pedaço de suas costas. Ainda em cima de mim, começou a beijar o meu ombro, e passou para o meu rosto, de uma forma tão carinhosa que doía. Eu não conseguia, e nem queria dizer nada. Eu me sentia extremamente feliz, mas uma felicidade contida, respeitando o momento: naquela hora não cabia nenhuma demonstração de amor, nenhuma palavra.

Isso sempre tinha sido um problema pra mim. Eu sentia uma vontade enorme de falar alguma coisa, de verbalizar meu carinho, mas não fazia. Algumas vezes porque não cabia e outras por medo da reação dele. Só que naquele dia não me deu vontade de falar um “eu te amo” nem nada do tipo, cheguei a me sentir até um pouco ridícula pelas vezes anteriores. Eu amava sim, mas não precisava dizer, ele sabia e me poupava o constrangimento. Além disso, eu não o queria para mim e talvez nunca quisesse, não fazia sentido dizer.

Depois da euforia de entender o que se passara comigo durante todos esses anos de dúvida eu tive curiosidade de saber o que ele sentia. Olhei pro lado, ele estava entretido com o celular, quieto. Cheguei a esboçar a pergunta, ele ficou esperando e eu desisti. Se eu nunca tinha sido capaz de dizer, não merecia escutar. Foi então que ele perguntou: “quer que eu volte amanhã?” e então eu entendi. O que nos mantinha era a dúvida, a tensão de não saber exatamente o que se passava com o outro. Eu estava radiante. Sorri, disse que sim e levantei pra abrir a porta, já imaginando dias ainda melhores.


Acompanhamento em tempo real da Anna e do Lelê!

domingo, 11 de janeiro de 2009

O resto é seu

Andei de um lado pro outro durante uns cinco minutos. Ia até a cozinha, voltava pra sala, ia de novo até a cozinha, pegava alguma coisa, voltava pra sala. O apartamento parecia estar ficando maior, mais triste. Eu estava sentindo uma agonia, uma vontade de chorar, e o choro não vinha, aí me deu vontade de vomitar, mas vomitar dava trabalho e eu precisava pensar, não podia perder tempo.

Fiquei imaginando como ela tinha tido coragem, depois de dois anos, só dois anos, me largar assim, sem avisar, sem conversar, sem me dar uma chance de convencer ela de que isso era uma besteira, que eu amava ela independente de qualquer coisa, e deixar ela dizer que eu falava demais, que eu era um saco, que eu era entediante, mas que ela ia ficar porque não tinha pra onde ir.E eu nem ia ligar pra isso, porque eu gostava mesmo daquela mulher, porque ela podia ser tudo, menos chata, e toda mulher é chata, e a minha não era, e eu gostava de dizer isso pra todo mundo, e gostava quando falavam isso pra mim.

Mas ela foi mesmo assim. Fiquei pensando nela, no corpo magrinho, branquelo, nos cabelos compridos, que ela queria cortar e eu nunca deixava, ficava pedindo por favor pra ela não cortar, que o cabelo era lindo e ela dizia que eu queria era que ela ficasse com cara de Amélia, e dizia que ia cortar mesmo assim, mas nunca cortava, no máximo aparava as pontas e voltava do salão com a cara triunfante e eu fingia que estava decepcionado, mas nem dava pra notar a diferença.

Ela era bonita demais. Não era nenhum mulherão, mas chamava atenção, tinha as coisas certas no lugar certo, tudo combinava. Combinava tanto que até amante ela arrumou. Passou dois meses saindo com um ex-namorado. Não fez a menor questão de esconder, pelo contrário, foi ela que me contou. Chegou do trabalho um dia, se arrumou toda e disse que ia sair com o cara, assim na maior naturalidade. Qualquer um teria batido, teria humilhado, ou pelo menos tinha colocado pra fora. O que eu fiz? Pedi pra ela parar, tirei quinze dias de férias e fomos pra Bariloche, que ela adorava. Porque não existe mulher sincera e, apesar de tudo, a minha era. Até demais.

Ela era engraçada. Quando bebia ficava alegre, sorridente, e as mulheres sempre ficam bêbadas demais, mas a minha não ficava, nunca passava vergonha. Eu adorava sair com ela, sentar num bar e passar a noite toda. Que homem faz um programa desses com a mulher? Eu fazia, e gostava muito, porque ela era divertida, me fazia rir, sacaneava todo mundo, virava a sensação de qualquer lugar. Eu tinha o maior orgulho.

Comecei a pensar que ela ia voltar. Tinha acabado de se formar, depois de conseguir um empreguinho com muito esforço, não tinha onde morar e não ia querer voltar pro apartamento da mãe, que ela detestava. Além do mais, eu era um marido bom, fazia de tudo por ela e no fim das contas, toda mulher acaba voltando.

Andei mais uma vez pela sala, passei na cozinha, peguei uma cerveja na geladeira e relaxei. Fiquei umas três horas olhando pra porta, bebendo e esperando ela entrar como se nada tivesse acontecido, pegar uma cerveja, ligar a televisão e sentar do meu lado, calada.

Mas ela não chegou. Deve ter passado a noite na casa de uma amiga – eu pensei – e fui dormir também. Quando entrei no quarto, no nosso quarto, não tinha nada que pertencesse a ela, um brinco, um lenço ou um isqueiro, nada. Ela tinha levado tudo.Mal registrei o vazio do quarto, vi uma sacola fechada em cima da cama. Pensei até se podia abrir a sacola, que ela podia ficar irritada comigo se fosse alguma coisa dela, mas abri assim mesmo. Dentro da sacola, um chumaço de cabelos, os cabelos dela. A primeira coisa que me ocorreu foi tentar imaginar como ela tinha ficado sem aquilo tudo. Logo depois, entendi a mensagem. Toda mulher acaba voltando, mas a minha não, e talvez eu não tivesse amado tanto se não fosse assim. Afundei a cabeça no travesseiro e chorei conformado até dormir.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Satisfação


Minha maior felicidade nasceu no sábado e eu ainda não encontrei as palavras certas pra explicar essa sensação. Enquanto isso, justifico a minha ausência e prometo voltar a postar em breve.
Beijos para todos!

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Pra não me acusarem de ter abandonado o blog...



E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia, qualquer dia
Entender de ser feliz
De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar
Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquece
Nessa boca, nesse chão
Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz
Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro toda hora
No espelho casual
É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo natural.
(Elis)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

"It's something unpredictable,but in the end it's right..."

Eu sempre fui a favor do aborto. Agora, grávida de oito meses, posso dizer que nunca tive tanta certeza da minha posição. Eu imagino que seja chocante para muitas pessoas lerem isso, e os mais fervorosos provavelmente me chamarão de assassina, ainda que eu esteja carregando o maior amor do mundo dentro de mim.

É justamente por estar amando tanto esse monstrinho, sem ao menos tê-lo visto ao vivo, que eu defendo o aborto. Filhos devem vir ao mundo quando são muito desejados. Conheço histórias de pessoas que engravidaram acidentalmente e hoje são mães e pais espetaculares. Entretanto, conheço muito mais histórias de pessoas que não ficaram satisfeitas com a notícia... e não estão até hoje.

Ao contrário do que as românticas pensam, são nove meses terríveis de enjôos, dores nas costas, órgãos espremidos, privações, pernas inchadas, inteligência emocional zerada e riscos diários... que só são compensados pela alegria de sentir os chutinhos, de acompanhar o desenvolvimento do bebê, imaginar o rostinho, as mãozinhas, pezinhos... coisas que só uma mãe muito feliz com a gravidez vai sentir.

Com certeza o aborto é uma experiência horrível e é muito difícil engravidar hoje em dia, com tantos métodos preventivos. Mas acontece, e não adianta querer ameaçar os pais com aquelas frases estúpidas: “ Brincou de médico, agora vai ter que brincar de papai e mamãe”. Uma vez grávida, não tem volta. E para os que pensam que estão “castigando” os pais, possivelmente estão condenando uma criança a viver como um fardo.

Além disso, quantas meninas morrem por ano com abortos alternativos? São remédios que causam hemorragia, chás de coisas inimagináveis e até agulhas de crochê. Na melhor das hipóteses encontram um açougueiro disposto a fazer o aborto... e ele acaba tirando coisa demais lá de dentro. E de que adianta uma lei que diz que é crime, se qualquer um com um pouquinho mais de dinheiro faz com toda a segurança em qualquer clínica clandestina, com médicos de verdade?

Fazer um aborto depois dos três meses, realmente é sacanagem. O bebê já sente a mãe, os dois já estão ligados. Quando se faz antes disso, não acho que a mulher esteja matando alguém. Posso estar errada, e talvez nunca saibamos ao certo quando começa uma vida, mas pra mim é quando o feto passa a ter consciência de si, e não acredito que isso aconteça tão cedo, por mais bonitinho que possa parecer.

Um filho liga duas pessoas por bastante tempo. Um casal que não se gosta o suficiente ou que por algum motivo não pode ficar junto é obrigado a conviver durante anos, ligados por uma criança inesperada. Mais do que nunca, hoje eu vejo o quanto é importante ter do lado alguém que apóie a mãe, que deseje o bebê tanto quanto ela. Fico triste só de pensar nas mulheres que passam por tudo sozinhas, ou com uma presença masculina absolutamente dispensável, que faz questão de assim permanecer.

É idiotice pensar que a mulher não se importa, que fará quantas vezes forem necessárias. Por mais que existam mulheres bem frias e inconseqüentes, é muito difícil passar por esse processo sem ficar machucada, marcada. Algumas mais, outras menos. Eu sinto muita pena, e não raiva de quem precisa passar por isso, e realmente acredito, mesmo que pareça um pensamento infantil, que de uma forma ou de outra essa criança virá pra perto da mãe um dia, e ela poderá recebê-lo com todo o carinho que provavelmente não pôde oferecer antes.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Solução

Ela tinha sete anos, mas seu semblante aparentava os trinta anos de uma mulher infeliz. Chorava, limpava as lágrimas, chorava,limpava o nariz, chorava. A empregada, adolescente cearense recém chegada, a abraçava, menos para consolar a menina do que pra se acalmar. Mais uma vez ela assistia ao espancamento da mãe. O pai, transtornado, arremessava a cabeça da mulher contra a parede repetidamente. Ela caía, ele chutava. Ela suplicava pra que ele parasse, ele a ignorava com socos, tapas e o que mais lhe ocorresse.

A menina foi ver onde estavam os irmãos menores. As crianças brincavam com bonequinhos, sentados no chão. Olharam como se quisessem perguntar por que ela estava chorando. Fungou aliviada, eles não pareciam entender o que estava acontecendo, e isso a deixava feliz. Como era muito pequena, não conseguia alcançar a maçaneta da porta. Puxou até onde conseguia e deixou encostada. Passou pelo quarto dos pais com os ouvidos tapados, os gritos continuavam.

Quando o pai saiu de casa, automaticamente ela parou de chorar. Era sempre assim. Não foi ao quarto da mãe, não tinha a menor vontade de olhar os olhos roxos, as marcas enormes espalhadas pelo corpo, o choro contido, para não doerem os músculos. Foi sozinha para o quarto e deitou-se com os irmãos, que já dormiam profundamente. Cansada, apagou em menos de cinco minutos.

De madrugada, despertou. O pai parecia ter acabado de voltar. Ela abriu os olhos, mas permaneceu imóvel. Conforme os passos iam se aproximando, seu coração disparava, conseguia escutar o barulho forte dos batimentos. Ele recomeçaria? Fechou os olhos, fingindo dormir. O homem entrou no quarto das crianças, acendeu a luz e chamou a menina. Imediatamente ela levantou. “Vem pra sala, deixa os meninos dormirem”.

A voz que era tão doce, que exibia a filha aos amigos, que a levava à biblioteca, que ensinava os números romanos, a deixava apavorada naquele momento. Pensou na mãe, que não era carinhosa nunca, nem assustadora. Seguia o pai pela casa em silêncio, os olhos ardiam de sono, as pernas doíam. Ele ligou a televisão, era dia de corrida. Ayrton Senna estava na frente, ainda bem. O pai sorriu, elogiou o piloto, tirou um saquinho de chicletes coloridos e deu à menina.

Sentiu uma enorme vontade de chorar. Por quê o pai só era bonzinho assim com ela? O que a mãe fazia de tão errado? Aceitou o presente. “Não vai comer?”, perguntou, cobrando. “Eu já escovei o dente”. Silêncio. O cheiro de álcool e cigarro tomava conta do ar. A garota não se importava, gostava da mistura. Estavam os dois encostados em uma grande almofada em frente à televisão. A pouca mobília da sala deixava os telespectadores sem muitas opções. Incomodado, o pai afrouxou o cinto e tirou de dentro da calça a pistola.

Ela não se mostrou surpresa. Ele gostava de exibir a arma pra filha, já tinha passado algumas tardes ensinando a menina a atirar. Os dedos pequenos não conseguiam puxar o gatilho, e ele se irritava. “Garota idiota”. Não gostava quando ele atirava nos gatos do terreno ao lado da casa, mas não falava nada. Sentia culpa, não queria decepcionar o pai, queria menos ainda deixá-lo irritado. Quando ele cansava da brincadeira, a colocava no carro e levava pro lugar que fosse, como se ela fosse um homem da sua idade.

Ás vezes chegava de mau humor em casa, o que se notava pela batida da porta, e a menina sabia que seu inferno começaria. Atormentava a mulher com coisas do tipo "não fale comigo hoje, não quero ouvir sua voz". Em uma hora lá vinha a mãe perguntar se podia servir o jantar...e ele quebrava os pratos em sua cabeça.

Na sala, o pai parecia não prestar muita atenção na corrida. A cabeça pendia pro lado. Apoiava uma mão no chão e segurava a arma com a outra. A menina contemplou as mãos do pai por alguns minutos. A mãe costumava dizer que as dela seriam parecidas. Olhou para as próprias mãos. Eram maiores do que as das outras meninas, e ela sentia vergonha. O pai agora parecia dormir. Cuidadosamente ela foi tirando a arma do seu colo. Ele rosnou e voltou a dormir. A ação não durou muito tempo. Empunhou a pistola, apontou para a cabeça do pai e puxou o gatilho. Com o tiro, na cabeça, ele se mexeu pouco. Não sentiu morrer. A menina deitou-se no chão, ao lado do corpo, fechou os olhos. Uma paz imensa tomou conta do corpinho magro.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Hein?

O GLOBO: O senhor disse ser o mais importante intelectual brasileiro. Pode explicar esta declaração?


PAULO COELHO: Não preciso explicar por que eu disse isso. Falei o que achava que tinha que ser falado. Uma frase é uma frase: sujeito, predicado e verbo. Sou o intelectual mais importante do Brasil. ponto. Não precisa explicar.

Devaneios espirituais...

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ponto de vista

- Se nos apaixonássemos, seria algo grandioso.
- Por quê?
- Porque as pessoas egoístas, de certo modo, são incrivelmente capazes de grandes amores.

Este lado do paraíso, F. Scott Fitzgerald

Grandes amores.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

E se você ficasse dessa vez?



Você ainda não viu? Veja urgente. Viu e não gostou muito? Veja de novo agora.
Esse é o filme que eu gostaria de ter feito. Pensei em escrever alguma coisa sobre ele, mas isso requer muita inspiração. Enquanto isso, deixo pra vocês um pedacinho do que surpreendentemente foi a história de amor mais bonita que eu já vi nos últimos tempos...(e faz bastante tempo que eu assisti da primeira vez).
Enjoy!

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Too late...

"She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love
But I can't help the feeling
I could blow through the ceiling
If I just turn and run"


Radiohead

Isabel passou a vida toda apaixonada pelo mesmo homem. Não que não tenha tido outras paixões ao longo da vida, mas essa foi a única que nunca acabou. Talvez não tenha acabado justamente porque não foi até o fim, não deu pra sugar até a última gota de amor, como acontece com os namoros e casamentos.

Eles nunca namoraram, na verdade. Não teoricamente. Tiveram um caso que começou quando ela tinha seus dezoito anos, e que nunca acabou. Casaram com outras pessoas, tiveram filhos. Isabel carregava aquele amor como quem guarda uma foto da avó na carteira ou um pingente que usou na adolescência. Aquela coisa boa de olhar, de lembrar. Quando tudo parecia estar dando errado colocava uma das músicas que lembravam algum momento dos dois, passava o perfume dele. Não precisava de drogas, a vida voltava ao normal, sentia-se mais feliz.

Nunca doeu. Falavam-se quase sempre, conversavam trivialidades, você leu isso, como anda o trabalho, alguma novidade, faziam umas gracinhas, se refugiavam nas ironias bobas. Às vezes a saudade esquecia os limites e ela fazia uma visita. Nunca deixou de ser um grande acontecimento olhar naqueles olhos, ouvir a gargalhada tímida, querer acreditar na alegria que ele sentia ao vê-la. Sentavam, conversavam, riam abobalhados, mas sempre parecia que alguém estava prestes a explodir. Isabel só conseguia pensar em beijar o rosto, a boca, as mãos. Queria tocar o corpo dele, seria capaz de passar o dia inteiro deitada olhando e tocando cada detalhe que ela conhecia tão bem.

Sua maior frustração não era a de nunca ter conseguido virar nada oficial: namorada, noiva, mulher... a maior frustração era a de nunca ter conseguido ter certeza do que ele sentia. Ela gostava de sentir aquela emoção toda, aquele amor profundo, que era até egoísta. Isabel adorava saber que longe de tudo, indiferente a qualquer pedaço de sua vida, aquele amor estaria sempre lá enquanto ela quisesse.


Faltava só a certeza de que em algum momento ele amou também. Em algum momento ele sentiu sua falta, ele quis beijá-la mesmo sabendo que não havia a menor possibilidade disso acontecer. Nunca cogitou a possibilidade de casarem, por exemplo. Na verdade ela era bem feliz em seu casamento. O bom de tudo isso era saber que o homem que ela tanto amava estaria pra sempre na quarta dimensão.

Contudo, restava a dúvida. Tinha medo de morrer sem jamais saber o que significavam pra ele todos aqueles anos. Queria ao menos receber uma carta, um texto, um poema, algo escrito por ele sobre ela. Disso ele sabia, mas nunca escreveu.

Um dia, Isabel esqueceu. Bastou acordar um dia e inventar que não havia retribuição, que não havia sentido. Chorou por cada ano, cada culpa que sentiu, cada mentira que contou, cada ilusão, sonho, amaldiçoou sua imaginação. Esqueceu.

Passaram-se meses e um dia se encontraram no sinal. Moravam e trabalhavam no mesmo bairro, mas nunca haviam se encontrado. Olharam-se. Isabel sorriu. Os olhos dele se encheram. Eu amo você. Os olhos dela se fecharam. O sinal abriu. Nunca mais se falaram.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Pequenas Epifanias

Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus –, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer – eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal – não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação – na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou – descuidado, também – em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio Fernando Abreu ( O Estado de São Paulo, 22/04/86)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo meu sonho,
dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Poema assaltado

Que tu viennes du ciel ou de l'enfer, qu'importe,
O Beauté ! monstre énorme, effrayant, ingénu !
Si ton œil, ton souris, ton pied, m'ouvrent la porte
D'un Infini que j'aime et n'ai jamais connu ?

De Satan ou de Dieu, qu'importe ? Ange ou Sirène,
Qu'importe, si tu rends, – fée aux yeux de velours,
Rythme, parfum, lueur, ô mon unique reine !
–L'univers moins hideux et les instants moins lourds ?

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Do outro lado da rua

Ele a olhava de longe. Pensava como podia ser possível aquela criatura estar ali, sozinha, esperando por ele, mesmo depois de tudo. As pernas cruzavam e descruzavam. Ele conhecia aquela postura incomodada, insegura. Muitas vezes já tinha se aproveitado dela, inclusive. Não conseguia sentir culpa por isso.

Viu quando ela tirou um cigarro do maço, como isso o irritava... mas como ficava bonita a desgraçada fumando! Nunca havia lhe dito isso, óbvio. Aliás, nunca tinha dito que a achava bonita. Costumava dizer que não imaginava como podia ela não enxergar o quanto ficava vulgar quando fumava, principalmente com aquelas roupas que usava. Ela olhava com aquela cara cínica e dizia que por algum motivo ele gostava dela, não seria por causa do cigarro que ele largaria aquilo que para ele era tão fácil de ter. Essa resposta o tirava do sério, e ele a mandava calar a boca. Ela ria. A lembrança do riso despertou-lhe uma estranha ternura.

De repente aquela imagem começou a despertar-lhe uma angústia inexplicável: o lugar imundo, a imaginação do cheiro que ela devia estar sentindo, o cigarro, os homens que a olhavam como cachorros á procura de carne. Imaginou-a, como sempre, segurando o choro pra não parecer fraca, carente, sensível. Era como se aquela cena, com tantos elementos sujos, tivesse transformado aquela mulher em um recanto de pureza, quase angelical.

Começou a sentir um enjôo forte. Pela primeira vez sentiu vontade de ajudá-la, de tirá-la dali o mais rápido possível, colocá-la no seu colo, encarar aqueles olhos enormes que pareciam sempre estar pedindo um pouco de atenção. Nunca sequer tinha cogitado a possibilidade de ficar com ela, casar, constituir família. Gostava da companhia, gostava de contemplar o sono tranqüilo. Principalmente, adorava o que ela dizia, a forma como gargalhava quando ele falava alguma coisa séria. Nunca havia encontrado uma mulher que o compreendesse tanto, ás vezes sem precisar dizer uma palavra. Aquele jeito de princesa destronada o cativava e irritava ao mesmo tempo.

O garçom veio, encheu a taça e agora uma leve tontura começara a aparecer. Olhou em volta, era como se todas as pessoas que ali estavam estivessem gritando em seu ouvido. Colocou as mãos na cabeça, apertou os olhos... as coisas foram voltando ao normal. Alguns casais que jantavam no restaurante o observavam discretamente. Tentou parecer normal, mas aquela angústia não passava. Olhou mais uma vez pela janela, ela não estava mais lá. Num impulso, levantou e se encaminhou até a porta. Encontraria ela de qualquer jeito. Como ela podia ter ido embora? Ele não lhe dissera que estaria lá, que ela esperasse?Chegou a puxar a enorme porta de vidro...
- Meu amor, vai lá fora por quê? Vai comprar mais cigarro? Você sabe que eu não suporto esse cheiro e, além disso, faz mal pro bebê!

terça-feira, 16 de outubro de 2007

No reservado

Entrava no pequeno restaurante com os olhos observadores de uma primeira visita ao local, porém seus passos firmes e os cumprimentos aos velhos conhecidos garçons demonstravam uma intimidade única. Como se aquela espelunca esfumaçada fosse mais seu lar do que o sobrado em que vivia.

Sentou-se no reservado que, sempre vazio, parecia estar à sua espera. Se não fosse pelo esmalte descascado, pela ansiedade e pelo cigarro de marca vagabunda, poderia pertencer a um quadro. Se não fosse pelo cheiro enjoado que vinha da cozinha e o nó na garganta, poderia ser musa de uma melodia suave. Esperava.

Gostaria de ter uma música que tivesse seu nome, mas principalmente, sua vontade era que ele estivesse novamente sentado à sua frente no mesmo reservado. Certamente receberia aquele olhar altivo de quem acha que não há mais nada a ser aprendido. Ouviria a voz suave que consegue convencer qualquer um a obedecer seus caprichos. Com a acidez característica que usa o sarcasmo como proteção, máscara.A pessoa mais suja do mundo. O príncipe dos defeitos.

"Como ele consegue enganar a todos tão bem?" Mas não a ela, a única que sabia. Revirava aquela alma repleta de complexos e paradigmas morais insignificantes, de machismos e sutilezas, de dor e espasmos vãos de prazeres desprezíveis, de lirismos com toque de seda regados a champagne, acompanhados de olhares gélidos que cortam os mais sensíveis em pedaços.

Mas não a ela, a única que sabia. E se o conhecia era porque via seu reflexo espelhado nos defeitos dele. Perdoava cada falta de caráter pois os compreendia, de uma maneira insólita, porém inquestionável.Queria novamente sentir o calor das mãos dele sobre as suas.Porém estas, neste momento, apesar de próximas estavam ocupadas acalentando o doce olhar crédulo daquela que nunca o iria compreender, e por isso mesmo permaneceria ao seu lado.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Constatação

"De cada amor tu herdarás só o cinismo

Quando notares estás à beira do abismo

Abismo que cavastes com teus pés"